Poderia num flamular
de um carmesim
dizer que somos os
rios das mesmas águas
vermelhas,
no entanto
flamulo o negro
do enraivecido,
do luto,
do destino de quem luta
rumo ao desconhecido.Quando estrelas morrem, explodem criando vida.
Poderia num flamular
de um carmesim
dizer que somos os
rios das mesmas águas
vermelhas,
no entanto
flamulo o negro
do enraivecido,
do luto,
do destino de quem luta
rumo ao desconhecido.O caldo rubro
a correr nas veias,
também escorre pelas vielas.
É uma questão geográfica:
em toda localização
há o caldo grosso
que seca e tinge o chão,
o lençol, a calcinha,
a camisa, a areia.
Por este caldo há quem queira
preservar a história de um povo
e sua raça, sofrimentos e glórias,
por meio de inglórias
decisões, tal derramar
o sangue de outrem
sem sequer perceber
que é o mesmo líquido
denso e rubro
que o seu.
Abaixo do cinturão do equador
tudo é considerado impuro,
desconsiderado ao diurno
por noturno ser ao norte
e à sua luminosidade racional.
Em torno da linha das entranhas
que divide o mundo
e cada ser que nele habita
tudo é fígado
e sangue, suor e pus.
Acima está o norte
que, pela razão apregoada,
se considera superior
ao inferior contraponto.
É engraçado como o superior
se desnorteia quando
o oposto se manifesta...
...pois inferior e superior
se dão numa questão ulterior;
pois ao interior tudo é parte,
não há maior primazia.
E a linha que divide a cintura
não é mais linha, é horizonte
para quem possa viajar
através dos hemisférios
desse todo.
Sábios são aqueles que não guardam caixas:
Não lidam com um passado já há muito morto
e nada presente.
Não guardam fantasmas, lembranças,
nada que possa vir com faces,
vozes e expressões de entes,
de repente.
-
Não fui sábio.
Guardei, etiquetei,
cataloguei e fechei.
Nunca mais toquei nas caixas
da minha vida e, quando deveria
jogá-las fora, queimá-las,
fazer qualquer coisa para que desaparecessem,
mais fingia que as esquecia.
São tantas caixas...
Caixas de amores mortos,
caixas de ódios vivos,
caixas de tempos passados
e de tempos não vividos.
Caixas de mágoas, paixões
e toda uma sorte de sentimentos
que não me cabem mais,
como roupas velhas de um corpo
diferente de outrora.
-
Talvez o que me resta de sabedoria
seja o que faço agora.
limpar a vida,
esvaziar as caixas
arrumar a casa
para voltar
depois de ir embora.
Você me derrotou.
Tua sujeira ainda gruda,
teima em não sair.
Teu antônimo me acometeu
e o que me resta é uma sensação
de que seria melhor não ter vivido
o que vivi por ti.
E essa caixa de quinquilharias
vividas por nós - não dois, mas vários -
tem o fio condutor entre eu
e a derrota que vocês
imperiosamente me impuseram.
A vitória de vocês,
não pode mais ser motivo
de sujeira na minha pele
não pode ser a mesma
da sua caixa.
Não quero mais recordações
guardadas aqui.
Tampouco quero essa caixa.
Que vá para o lixo das nossas histórias.
Tive que abrir essa caixa antiga
coberta de poeira grossa - daquelas
que já se misturam ao óleo da madeira delas,
poeira grudenta, resquício das almas
sebosas, purulentas que ali habitam -
que não saem ao soprar.
Havia foto-memórias ali dentro
e a primeira que se destacou
entre tantas que estavam acumuladas
foi a sua. Seus olhos que me viam.
Suas palavras vieram ao meu coração
quase como um ressurgimento
de vozes antigas que falam
pelas eras, pelos ventos da sofreguidão.
Devo limpar tanta poeira
afim de que saia da minha pele
tamanha sujeira que ficou
acumulada em caixas como esta...
e mais caixas...
e mais caixas...
e mais caixas...
tantas caixas...
Me encontrei entre os ovos
infecundos e galados
de Teodoro.
Um tanto Demétrio,
outro tanto Ivan
e mais um tanto Alexandre,
me vi no pai e seus filhos.
Me vi até no bastardo
por um instante,
me vi um restolho
familiar e contraditório.
Tive meus egoísmos,
tive minha lascívia,
tive meu ateísmo
e tive minha inocência.
A minha face,
minha cara má
me leva ao princípio
de uma vivência:
Eu, que nada sou
e tudo tentei ser
fico em meio aos ovos.
Sou infecundo ou galado?
Choco o mundo
ou por ele sou chocado?
Eu, sem orgulho
me leio na vida ao lado.
Não sou tudo,
mas não tenho faltado.
À quem eu fiz sofrer
peço o perdão que há muito
tenho protelado.
É fato que errei
e não assumi a responsabilidade
do egoísmo, da cobiça,
da minha falta, da minha maldade.
A cara má que ficou na memória
quer ser apagada,
nem substituída por uma cara boa,
porque não importa se esta ressoa,
é melhor se deixar passar
e eu que viva
entre a tentativa
de ser fecundo
e não ser galado,
pois cantar de galo
não é de viver
o modo mais profundo.