Gregório está na cama do hospital, nem parece que já se passaram três dias, ou seriam quatro? Ele já não tem certeza, nem de quanto tempo passou, nem de quanto tempo ficará ainda, mas o pior já passou. Na fila do transplante por mais de três anos, de repente esses três, ou quatro dias, deixam de parecer uma eternidade, comparados aos anos de espera, mas mesmo com livros, televisão, comida, pessoas cuidando de sua saúde, esses poucos dias ainda incomodam, parecem um longo tempo. Talvez o tempo não seja comparável, não seja realmente contabilizado da maneira correta, tão estranho, ele pensa. Sessenta e dois anos... meia-dúzia e depois o dois, que diabos! Passou tão rápido, era tão fácil quarenta anos atrás...
Na verdade ele sente melancolia, pois lembra do irmão. Sente saudades dos tempos áureos, como diria o Ricardo, “tempos malucos, Gório, maluquices sem fim...”
Nunca mais viu Ricardo, ele virou a cara para todos nós, pensou. Passou a mão pela cabeça, ainda sentia aquela tontura, talvez o sangue não estivesse irrigando a cabeça direito, talvez seja efeito dessa alimentação controlada, essas horas uma cervejinha iria bem, só para dar uma inebriada no sentimento, na verdade queria mesmo era uma garrafa de whiskey, serve até cachaça! NÃO! Está sóbrio já faz dez anos, e se não fosse por isso, estaria enterrado ao lado de Daniel. Quando tudo isso começou? Mal se lembra, realmente foram tempos muito loucos, ainda mais quando conheceu Geraldo, Felipe e o resto dos Mortos, nós da Ampulheta ainda éramos novos no meio e nem tínhamos idéia do que existia de doideira nesse mundo. Foi um pouco antes disso, foi quando Daniel me presenteou com aquele órgão... Hammond-B3... paixão de infância, eu ficava tentando tocar num desses que tinha no bar perto de casa. Uma lembrança muito engraçada surge desse dia, ele chegando na casa que Daniel dividia com Ricardo e o resto da trupe, Cláudio, Jaime e Bruno. Violão nas costas e uma pequena mala na mão.
“Gório! Você veio mesmo! Pessoal era justamente dele que eu estava falando ontem. Meu irmão, Gregório. Ele vai canta.” Daniel realmente botava fé, acreditava em mim, Jaime e Bruno olharam com aquela cara de que tudo estava bem, e lógico estavam sedentos para fazer um som. Apenas Cláudio e Ricardo questionaram “Ele sabe cantar mesmo?”, Daniel já foi mandando, “Gório, canta aquele blues do Son House aê, Grinnin’ In Your Face! Mostra pra eles o fazíamos lá na nossa cidade!”
Eu soltei a garganta, era o que eu sabia fazer de verdade, o violão só me ajudava a compor e fazer um andamento, quem tinha a prática era o Daniel, ele era o apaixonado pelas cordas, e eu pelas teclas. Abriu um sorriso para esta lembrança. Sentia-se feliz, e afortunado por ter participado de algo tão grande. Lembra daquele dia, com gosto, ainda mais pelo presente, Daniel o chamou para a sala de ensaio e falou “Para você entrar na banda, só tem uma condição a cumprir agora, aprende a tocar aquela porra ali!”, Daniel ria, quase ao ponto de se mijar, teve que ir ao banheiro, Gregório lembra da risada do irmão, em tom de desafio, mas ele estava rindo demais por ver o irmão mais novo chorando de alegria, parecia criança quando ganhava uma bicicleta, levando em conta que na década de 60, uma bicicleta era para poucos, assim como um Hammond-B3 de madeira, aliás, é para poucos até hoje. Daniel voltava do banheiro, Jaime e Bruno entraram na sala riram junto, e o último estendeu a mão “Júnior, levanta aê! O lance é o seguinte, pega esse livro aqui, e destrincha, você tem dois dias para aprender alguma coisa, esse fim de semana não terá ensaio, precisamos trabalhar, ok?”, Jaime batia nas costas do novo membro, gargalhando, e dizia que “Tudo vai ficar bem, você vai dar conta. Daniel disse que você tem umas composições, por que não passa para a tecladeira?”, “Vou tentar, dois dias né?”. Ricardo entra na sala, “Dois dias, e dois baseados, presentinho para você, seja bem vindo de volta ao sul! Mas estude antes hein!”, todos riam, até o Cláudio encostado na porta.
“Foi assim que começamos, foi assim que comecei.”
A doença veio a ele devido aos anos desregrados, mas ele não se arrepende disso, pode se arrepender de outras coisas, mas não dos momentos divertidos, do começo de tudo.
“Gório! Como está meu querido? Esse repouso está um saco né?”
A voz de Felipe, Deus, quanto tempo não o via, já fazia mais de um ano! Felipe é companheiro de longa data, daqueles tempos loucos de verdade. Oito anos mais velho, e passou pela mesma operação doze anos atrás, transplante de fígado, Hepatite C. Hoje ele faz campanha sobre doação de órgãos, doze anos após o transplante, está inteiro. “E aí, está pronto para tomar umas geladas? Trouxe umas latas aqui para você e...”, Gório arregalou os olhos “...calma é brincadeira!”, levanta uma garrafa térmica. “O médico disse que chá era permitido, garanto que este aqui vai te fazer viajar longe! BRINCADEIRINHA!!!”, sempre o piadista, as drogas ficaram para trás já há muito tempo, ambos são sobreviventes da época do Amor Livre, Natureza, Paz, Música e Revolução. “É erva mate, meu amigo.”
Coçando a barba, balbucia umas palavras “Pô Felipe...”
“O que foi meu?”, olha para Gório, enquanto serve chá na caneca.
“Você é foda hein! Cada brincadeira! Não posso ficar dando muita risada, porque eu sinto puxar esses pontos de merda!”, Gório ri leve, para descarregar a tensão, “Dê-me esse chá, por favor.”
“Ahhhh... o sulista aprendeu a ser educado com o tempo hein! Está até falando “por favor”! Tudo bem, entendo a situação.”, Felipe lembra de todos ao seu lado, tanto no transplante, quanto no câncer de próstata, oito anos depois, azar, MUITO AZAR, pensa, mas a sorte bateu de novo na porta e lhe concedeu mais um tempo, e ele está aproveitando bem, não aparenta setenta anos. “Lembro de vocês todos me visitando, até os moleques, como estão?”
“Estão bem, vieram me visitar já. Aparecem todos os dias.”, pensa como é bom conversar com um amigo vivo daquela época. “E a família como vai? E a OUTRA família?”
“Estamos todos bens, ainda bem, mandaram desejos de melhores e virão te visitar depois. A OUTRA família está bem, o Roberto e o William me disseram que já passaram aqui, e o Michel vai dar um pulo aqui amanhã. Vamos nos juntar para uma temporada, sabe como é, né?”, Felipe faz uma cara feliz, mas triste ao mesmo tempo.
“O Geraldo faz falta na banda né? É como o Daniel, os dois eram meio que guias espirituais... o que será que acontece com esses guitarristas?”, ri leve, pois lembra das duas bandas tocando juntas perdidas em qualquer canto do país.
“Ele faz falta sim, o Ronaldo também, cara acho que todos que já se foram fazem falta... o Bruno era um que vocês adoravam e se foi um ano depois do Daniel, e quase no mesmo lugar... eles eram família.”
“Pois é... mas o Geraldo e o Daniel realmente sabiam como mover, nos levar para a frente. Se não fosse pelo Ricardo, eu teria parado lá mesmo, teria feito o mesmo que vocês, terminado a banda e faria algo sozinho...”, mas foi melhor assim, pensou.
Felipe ria, “Desculpe-me, mas você lembra daquela noite que o Geraldo ficou alucinado e não parou de solar e de repente o Daniel se juntou e os dois ficaram numa conversa muito doida? Aquilo foi mágico, e era engraçado pois eles pareciam crianças...”
Realmente tinha sido uma noite mágica, praticamente três bandas no mesmo palco dando o melhor de si num bis de quase uma hora. “Rapaz, éramos para esquecer aquela noite, depois de tanta porcaria no camarim! Mas não dá, foi mágico! A banda do Pedro subia junto, quando vimos tinha cerca de dezesseis ou dezessete pessoas mandando um improviso!”, nunca mais se repetiu... “Nunca mais aconteceu... o Pedro enlouqueceu logo depois disso né... mas que momento! Guardemos as coisas boas, de ruim que fique só as saudades!”, Gregório não escondia o sorriso, contente por ter participado daquela noite, contente por tudo que teve.
Felipe concordou e acrescentou “Vamos, beba esse chá, branquelo! Daqui a pouco chegam as suas bolachas de papagaio.”
O tempo passou, e memórias encheram aquele quarto de hospital, coloridas, alucinógenas, piadas, coisas boas da vida, ambos sabem o quanto foram bem afortunados, o quanto se passou até estarem onde estão. Ainda não é hora de acabar.
“Está no fim do horário de visita, tenho que ir”, fechava a garrafa, “mas volto amanhã, trago algum livro para você?”
Gório pensou, não sabia o que ler, ficou na indecisão, e por fim decidiu “Me traga uma escaleta, um caderno e uma caneta, ainda posso assoprar. E me faz mais um favor, me traga a nova edição do Batman, quero ler qualquer coisa, com figuras, livros eu posso ler em casa, lá as paredes não são brancas.”, Felipe riu junto.
“Tudo bem, amanhã eu trago! Durma bem. E para você tem uma surpresa aí na gaveta do criado mudo. Tchau!” saiu rápido como se tivesse algum compromisso.
“Surpresa!?” Abriu a gaveta e viu, não poderia ser, maconha? Ele bolou um baseado? O filho da mãe trouxe maconha para o hospital? Só pode estar de brincadeira! Cheirou o cigarro, mas não tinha cheiro de maconha, pelo contrário, ele sempre falou que a comida de hospital era ruim e sem graça, ainda mais bolachas água-e-sal... é um cigarro de chocolate. Gregório ri, sente dor, mas ri mesmo assim... “sempre o brincalhão... esse não tem jeito...”. Mastiga o chocolate, e se acalma do riso. Amanhã é outro dia, mais um dia, ainda bem.
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Gregg Allman, um dos músicos que mais admiro, passou por um transplante de fígado recentemente. Decidi fazer esse pequeno conto/crônica, sobre ele como paciente em recuperação, conversando com Phil Lesh(outro ótimo músico, que passou também por transplante de fígado) sobre os bons tempos, onde a Allman Brothers Band se juntava com o Grateful Dead e até o Fleetwood Mac no mesmo palco, mandando jams em shows de mais de três horas de duração. E lógico, uma pequena piada com os famosos "cigarros de chocolate", que eu comprava quando criança.
Aqui está o link com a notícia: http://kissfm.com.br/noticias/gregg-allman-passa-por-transplante-de-figado/
Que músicos como ele e seus amigos vivam por muito mais tempo.
Olá blogueiro,
ResponderExcluirÉ muito importante também incentivar a doação de órgãos e conscientizar as pessoas sobre a importância deste gesto de solidariedade.
Para ser doador de órgãos não é preciso deixar nada por escrito. O passo principal é avisar a sua família sobre sua vontade. No entanto, os familiares devem se comprometer a autorizar a doação por escrito após a morte.Divulgue a ideia e salve vidas!
Para mais informações: comunicacao@saude.gov.br
Ministério da Saúde
Rapaz! Essa veio do nada!
ResponderExcluirMas tá aí a informação para quem não sabia. :)
Bonita homenagem.
ResponderExcluirFico triste ....que os ensaios das bandas não sejam abertos para o público, adoro ensaios são mais espontâneos e bem mais humorados do que os shows.
Gostaria de saber, porque você não colocou nenhuma personagem feminina?
Preconceito? Rsrsrsrs
Ps: Valeu a dica....estou adorando Gregg Allman
Ah sim, eu sou fã da Allman Brothers Band, então sou meio suspeito para falar... mas quanto essa parte de ensaios, vou te passar mais uma dica, procure diversos shows dessa banda, do Gov't Mule, do Phish, do Black Crowes, do Widespread Panic e do Grateful Dead, essas bandas são diferentes de tudo que você já ouviu ao vivo. Elas não repetem o set list, sempre prologam as músicas, mudam do nada. Ou seja, são bandas bem espontâneas, e hippies hehehehe
ResponderExcluirSe quiser algum material, me fale, você tem meu email(acho), te passo os caminhos. ;)
Então, personagem feminina? Nem pensei! Normalmente escrevo sobre mulheres, romances, etc, mas esse último mês eu abandonei um pouco o tema. Nada contra, adoro tentar entender as mulheres, mas ainda não sou nenhum Chico Buarque. :)
Faça bom proveito da música dele, e ouça também Gov't Mule. É fenomenal!
Muito Obrigada pelas dicas.
ResponderExcluirMeu e-mail é : roxane121@yahoo.com.br
Não tenho o seu e-mail.:(
Você já escreveu um romance? Quantas páginas? Posso Ler ?
“adoro tentar entender as mulheres” Qual é a grande dificuldade em entender as mulheres ?
Ainda não escrevi um romance, mas tenho algumas idéias, vamos ver se consigo colocar em prática logo. :)
ResponderExcluirSão várias dificuldades, afinal são pessoas, e pessoas não são iguais, e o fato de serem do sexo feminino deixa um "além" a ser decoberto, explorado, teorizado, ou simplesmente desfrutado, por um breve momento, ou para sempre... que viagem doida. Acho que são todas loucas, mas fazer o que, homens precisam de umas doideiras na vida... hahahahaha
Sr. Machista,
ResponderExcluirLoucas? Não...definitivamente não somos loucas....vocês que são indivíduos de com estado psicológico instável e não conseguem fazer uma boa leitura do nosso comportamento.
Eu louca....imagina, você já teve TPM ? Já fez prova de Química com cólica?
Já brigou por causa do último chocolate da casa ? Já chorou vendo Titanic ? Já chorou lendo Romeu e Julieta, mesmo sabendo do final ?
Alias....você sabe o significado de
TPM :
Todos Problemas Misturados.
Tô Pu.ta Mesmo.
Tocou, Perguntou, Morreu.
Tente no Próximo Mês.
Toda Paixão Morre.
Tô Pirada Mesmo
Toda Pressão Masculina
Tempo Para Meditação
Tendência Para Matar
Tem Parceiro Melhor
Temporada Proibida para Machos.
Lembrete: caso uma mulher na TPM, mate um homem, ela tem atenuação da pena !! Então...cuidado amigo !!!!! rsrsrsrsrsrsrs
Por que a psicanálise é mais rápida para os homens? Porque quando dizem para ele voltar à infância, ele já está lá
Pense nisso.
O único problema é que a psicanálise ainda não conseguiu explicar com exatidão uma coisa inexata. Cada um tem uma interpretação, portanto é muito fácil categorizar algo ao seu bem-entender. É muito conveniente.
ResponderExcluirSó você sabe o que está sentindo, e se não revela, ninguém saberá, e mesmo que revele, poucos entenderão.
Eu não sou machista, pelo contrário, acho isso uma besteira só. Guerra dos sexos é só uma coisa inventada por gente que não suporta a idéia de ser superado por outra pessoa. Babaquice.